Neste vasto mundo chamado ‘civilização ocidental’, os
conceitos de democracia e democracia representativa aparecem imbricados, quando
se colocam, como questões cruciais, a
legitimidade do poder e da representação, ambas decorrentes da soberania
popular (única fonte de poder democrático), que se expressa mediante o voto em
eleições periódicas e universais. Isso está muito bem definido no parágrafo
único do art. 1º da nossa lei maior: “Todo o poder emana do povo, que o exerce
por meio de representantes eleitos, ou diretamente, nos termos desta
Constituição”.
Dentre três poderes constantes da formulação montesquiniana
– Executivo, Legislativo e Judiciário –, um se aparta dos demais, exatamente
por carecer do sopro legitimador da representação. Trata-se do Poder
Judiciário, um corpo de funcionários públicos encarregados de administrar a
Justiça. Sua legitimidade poder-se-á dizer que é derivada dos poderes Executivo
e Legislativo, o que fica bem caracterizado no processo de nomeação dos
ministros do STF, indicados pelo chefe do poder Executivo com a aprovação do
Senado Federal. O ingresso na carreira, à margem da soberania popular, faz-se mediante concurso público, e, ao invés
do crivo eleitoral periódico, o juiz goza da vitaliciedade no cargo.
Ao contrário dos demais Poderes – fiscalizados por
inumeráveis organismos (como Tribunal de Contas, Ministério Público, Receita
Federal, Polícia Federal etc.), o Poder Judiciário resiste ao controle externo,
e o Conselho Nacional de Justiça deixa de cumprir qualquer papel fiscalizador
na medida em que se transforma em grêmio corporativo.
É, no entanto, esse Poder – assim limitado em sua
legitimidade – que, invadindo as competências dos demais, caminha para além de
seu papel limitadamente judicante, para imitir-se em funções típicas de
legislador, aproveitando-se da inépcia e da inaptidão do Congresso Nacional que
aí está. Arvora-se mesmo ao exercício de um monárquico Poder
Moderador, tentando exercer algo como uma supervisão sobre os demais poderes e
mesmo a sociedade, pois tudo pode, apresentando-se como epicentro da política e
da vida nacional. Quanto mais avança sobre os demais poderes – ambos em crise
de legitimidade –, o Judiciário aprofunda
a crise geral e se faz agente do fosso cavado entre as instituições e a
sociedade, ele mesmo se colocando na berlinda.
Descasado da legitimidade da soberania do voto – a que se
submetem periodicamente os parlamentares – o Judiciário expande suas
competências e se intromete na administração pública; além de legislar e desprezar princípios e
ditados constitucionais, como o princípio
da boa fé e a presunção da inocência.
É escandaloso seu desprezo pela regra contida no inciso LVII do art. 5º
da Constituição, segundo o qual “ninguém
será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal
condenatória”.
Atuando de forma concertada, juízes, ministros (de especial
os ministros Carmen Lúcia, Luiz Fux e Facin) e Ministério Público intentam
mesmo substituir o eleitor, organizando um processo eleitoral do qual afasta,
por meio de manobras que atropelam a lei, a vontade manifesta de algo como 40% do eleitorado
brasileiro, já emprestando ao pleito a tisna da ilegitimidade, e ao eventual
novo presidente a pena da ingovernabilidade, impondo ao país
o agravamento da crise política em que nos debatemos desde 2015, com seu
interminável rol de consequências, como
a crise econômica que se aprofunda, anunciando a crise social que pode nos
levar a um impasse institucional.
O golpe parlamentar de 2016 dependeu de uma chicana do
ministro Gilmar Mendes, sempre ele, impedindo a posse do ex-presidente
Lula na Chefia da Casa Civil da presidente Dilma, para o que também concorreu o
crime ainda impune do juiz Sérgio Moro, revelando de forma ilegal o teor de
diálogo da presidente com o ex-presidente, tomado também ao arrepio da lei. A
denegação do habeas corpus impetrado pelo ex-presidente dependeu de uma chicana
da ministra–presidente Cármen Lúcia, manipulando a pauta ao antecipar o
julgamento de um caso particular sobre a norma geral, e do voto tragicômico da
insegura ministra Rosa Weber, sem levar em conta que seu voto contra seu
entendimento transformava uma minoria em maioria, o que, no caso, equivalia a
negar a liberdade do cidadão que batia às portas do Tribunal.
O ministro Luiz Fux,
presidente do TSE, falando pelos cotovelos o que lhe parece ser do aguardo da imprensa, anuncia o veto não só dele como do Tribunal
a eventual pedido de registro da candidatura Lula, e, assim, o possível
registro dessa candidatura é negado antes do julgamento.
Alguém chamaria isso
de Justiça?
O ministro alega, para o veto que deseja ver proclamado
independentemente de provocação, a
regra da chamada lei da ficha limpa que veda a candidatura do condenado em
segunda instância, oportunamente se esquecendo de que o dispositivo tem sua constitucionalidade
posta em questão, e sobre esse questionamento terá de pronunciar-se o STF.
Assim se comporta um Poder Judiciário partidarizado e,
portanto, parcial.
Impondo ao país extremo retrocesso, o Poder Judiciário
comanda uma política criminalista
punitivista, com a qual os senhores e senhoras togados e togadas supõem
dialogar com uma opinião pública açulada pelo monopólio ideológico dos meios de
comunicação de massa. Juízes assumem os inaceitáveis papéis de promotor e de
policiais, contaminando de autoritarismo toda a estrutura policial-judicial,
que sempre resistiu à democratização. O juiz não julga com isenção, e se
transforma em auxiliar do Ministério Público, e assume os papeis de assistente de acusação e investigador. Depois da japona, que a pouco e pouco intenta
retornar à luz do dia, emerge a ditadura da toga, protegida pelo formalismo
legal.
Assim, e inevitavelmente, o Poder Judiciário – dos juízes de
piso ao Supremo – vem construindo uma
ordem ideológica à qual o país adere, e pela qual são legitimados os processos
de punição e privação da liberdade. A doutrina é formulada pela histeria dos
programas policiais do rádio e da TV.
Já foi dito que o STF transformou-se, em seus
julgamentos, numa caixinha de surpresas,
pois o pleno não julga e por não julgar não fixa jurisprudência, e a aplicação
da lei tem a mesma segurança de uma roleta de cassino, pois cada um dos 11
ministros é um tribunal, decidindo monocraticamente em cima de pedidos de liminar, cujo mérito jamais é julgado. O
STF tem liminares sem julgamento há oito anos! Setenta e cinco das 100
liminares concedidas por ministros do STF aguardam julgamento no plenário.
O STF brasileiro jamais foi algo que honrasse a construção
democrática. Sempre esteve a serviço do poder econômico e dos poderosos,
conviveu com o Estado Novo e confraternizou com a ditadura militar (1964-1985).
Vem impedindo a revisão da Anistia e sempre foi um baluarte contra a reforma
agrária. Jamais foi imparcial e seus quadros são, em regra, escolhidos dentre
os rebentos da classe dominante – e nenhum juiz está infenso aos
condicionamentos ideológicos e de classe que conduzem seus atos. Mas é preciso
dizer que sua composição jamais foi tão rebaixada quanto o é em nossos dias
(ressalvadas raras e honrosas exceções) quando, na escolha dos ministros, os
presidentes da República deixaram de homenagear biografias para privilegiar
anônimos em busca de construção biográfica.
Os juízes ora são
bons por que prendem, ora são comprometidos porque soltam, e prendem e soltam
não função dos autos, ou mesmo de aplicações doutrinárias, mas preocupados, em
sua maioria, com as reações da opinião púbica, enquanto outros julgam em função
de seus interesses, de seus compromissos com a vida partidária, ou, mesmo, em
função de interesses empresariais demasiadamente opacos.
Um homem de bem – Na sua aparente fragilidade física, Hélio Bicudo simbolizava a coragem e o
desassombro que só os grandes homens, forjados na força moral, podem ostentar.
Nos anos mais cruentos da ditadura, sobressaiu-se, ao lado de D. Evaristo Arns
e mais alguns poucos, como defensor dos direitos humanos, enfrentando, como
procurador de Justiça de São Paulo, a repressão policial-militar e o “Esquadrão
da Morte”. Sua existência e sua luta eram, para muitos de nós, uma sinal de
esperança: enquanto lutasse enfrentando inimigos poderosos e reais, maiores
eram nossas expectativas de sobrevivência. Esse espírito – de um Quixote bem
sucedido, que tem em Sobral Pinto sua melhor referência – Hélio Bicudo levou
para a vida pública e a carreira política que honrou como poucos por longo
tempo.
Roberto Amaral - Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de
Ciência e Tecnologia.
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