“Desbunde” é uma gíria dos tempos da ditadura - que no
próximo mês de março completa 60 anos, ainda com muitos segredos guardados. No
final dos anos 1960, “desbundar” significava abandonar a luta armada, render-se
à dor ou ao medo, ironizando o desertor como se ele simplesmente preferisse a
curtição dos hippies à resistência guerrilheira.
Mais tarde, na minha geração, que se tornou adulta quando a ditadura já
estrebuchava, “um desbunde” passou a ser um elogio a um lugar lindo ou a uma
pessoa incrível. Também tinha um lado B, mas menos carregado: no início dos
anos 1980, o cara que “desbundou” era aquele que perdeu a noção, bebeu demais,
pirou demais, se deslumbrou demais.
A expressão me veio à mente assim que a jornalista Malu Gaspar revelou a ocorrência de um certo réveillon privado em
uma ilha paradisíaca na baía de Todos os Santos, com luxuosa hospedagem, shows
de Nathanzinho e Bell Marques, e mais de uma semana de folia: de 28 de dezembro
de 2023 a 6 de janeiro de 2024.
Tudo gratuito para os convidados, mesmo que não se saiba exatamente quem pagou
a conta.
O “desbunde” de beleza e prazer até que rendeu poucas fotos nas redes sociais
dos cerca de cem privilegiados que desfrutaram, com exclusividade, de
praias de água cristalina e finas iguarias da culinária baiana em uma ilha que
pertence ao município de Salvador, mas só tem acesso por embarcações
particulares.
Ao que tudo indica, foi pedida discrição aos convidados.
E não apenas por ser a festa uma demonstração chocante de riqueza e apropriação
do espaço público em um país em que os 15 mil brasileiros mais ricos quase
dobraram a renda nos últimos quatro anos, enquanto a imensa maioria - 95%
- apenas atualizou seus rendimentos pela inflação, como publicou a Folha de S. Paulo na terça passada.
Acontece que entre os presentes estavam dois ministros de Estado, o prefeito de
Salvador, deputados, autoridades como o presidente do Tribunal de Contas da
União e o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, além de “gente do Ministério
Público, juízes federais e desembargadores”, como detalhou, depois de flagrado pela imprensa, o organizador
do evento, o deputado Elmar Nascimento, líder do União Brasil e candidato à
futura sucessão do presidente da Câmara.
Se participar da promoção de uma candidatura política e confraternizar com
empresários com interesses no Executivo e ações na Justiça não inibiu ministros
e representantes da Justiça, tampouco os deteve o fato de a gestora do espaço,
a Fundação Baía Viva, e outros 11 réus terem sido condenados em agosto de 2022
na Justiça e multados em R$ 5 milhões de reais por danos morais coletivos na
própria ilha dos Frades, onde se dava o festim.
Presidida por Isabela Suarez, filha do empresário Carlos Suarez, o “rei do
gás”, dono de terras e propriedades na ilha e também réu na mesma ação civil, a
fundação foi acusada de fazer obras irregulares com danos ambientais e de
colocar cercas e barreiras em um espaço público, atrapalhando a vida das
comunidades de pescadores da região, que não conseguem mais circular por ali.
Depois que a notícia da festa com a sua presença vazou, Suarez, anfitrião do
casarão do século 16 com 15 suítes que hospedou parte dos ilustres
convidados, disse a jornalistas que as decisões, comemoradas à época pelo MPF, foram anuladas e
"não há nenhuma decisão judicial válida para obrigar o pagamento de danos
morais coletivos ou obras de restauração".
O que não torna menos constrangedora a presença de magistrados, procuradores,
promotores e desembargadores no espaço que permanece cercado, privatizado, com
capela climatizada e outras obras consideradas irregulares na ação movida pelo
próprio Ministério Público Federal.
Suarez, dono de empreendimentos imobiliários e de distribuidoras de gás em
diversos estados, sabe o valor do “seu” paraíso na hora de cultivar contatos. O
ex- “S” da empreiteira OAS, acusada de corrupção na Lava Jato, contou com a
ajuda do mesmo deputado Elmar Nascimento para enfiar um jabuti na lei da privatização da Eletrobrás, em 2021,
favorecendo as térmicas a gás, uma fonte de energia desnecessária e
ultrapassada em tempos de emergência climática.
E a influência de Suarez não diminuiu com a troca do governo.
Ao contrário dos colegas Celso Sabino (Turismo) e Juscelino Filho
(Comunicação), o ministro Rui Costa (Casa Civil) teve o bom gosto de não
comparecer à festa, embora seja amigo de Suarez. Costa é considerado o “pai” do
atual PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) que prevê a construção de
gasodutos de interesse do empresário.
O “rei do gás” também atua no Congresso para desengavetar o projeto do Brasduto, uma rede de gasodutos financiada com dinheiro
público - ou, em nova versão, diretamente paga pelos consumidores de energia -
para beneficiar as distribuidoras. E ali estavam deputados de A a Z- ou de
Arthur Lira (PP-AL) a Zeca Dirceu (PT-PR).
Fora dos gabinetes oficiais, longe dos olhos do público, em cenário bem diverso
da Praça dos Três Poderes, autoridades “desbundam”, entre uma taça de
champanhe e um banho de mar, no doce balanço de interesses públicos e privados.
Ao revelar o convescote, jornalistas, como Malu Gaspar, demonstram, mais uma
vez, por que sem liberdade de imprensa não há democracia real.
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