Nem as “instituições”
da República, nem o governo, cuidaram de advertir o país para o significado
real das arruaças, nem os partidos do campo progressista cuidaram de advertir e
orientar seus segmentos organizados, nem o movimento sindical se fez ouvir a
respeito. Mas nenhum mortal que houvesse acompanhado a emergência do
bolsonarismo poderia ignorar que a serpente continuava viva, e sua peçonha mais
viva e maligna do que nunca. Naquele então como agora, quando o cantochão
liberal da “pacificação nacional” – sempre invocado quando a direita perde – é
a chave para a impunidade dos criminosos, felizmente rechachada pelo presidente
Lula no tom devido.
Ninguém ousou furar o “véu da fantasia”: nenhuma informação
sobre o grave quadro de uma real insurreição foi prestada ao país; nenhuma
declaração do governo se ouviu, senão quando a calmaria se impôs, e os
“poderes” confraternizaram. Mesmo assim silenciaram os partidos. O discurso político terminou por ser
construído pelas imagens da TV Globo.
Continuamos nos satisfazendo com as aparências. Que amanhã
não choremos quando das cinzas levantarem labaredas, pois o inimigo está sempre
à espreita. A esquerda deve ao país uma
avaliação do processo vivido, e ainda não findo, até porque a história não se
compõe de vasos estanques. Conhecer este passado imediato, é a melhor forma de
evitar sua reincidência. De outra parte, é preciso revisitar a proclamada
resistência das “instituições”.
Vencido nas urnas, Jair Bolsonaro teve seu retorno frustrado
pelo encontro de dois intervenientes que não estavam na planilha de seus
engenheiros; o primeiro deles, a ausência da adesão popular ao assalto. Esta
era necessária para convulsionar o país, com o que os golpistas teriam
justificativa, artificial embora, para a aplicação da GLO, o ponto central de
todas as articulações. Outra asa quebrada foi a disfunção interna, a ausência
de comando no levante. Entregar todas as fichas ao voluntarismo das massas
raramente dá certo. Sabe-se como terminou a tentativa de golpe de Jânio Quadros
em 1961: com o ex-presidente embarcado em um cargueiro para longa vilegiatura
na Europa.
No ápice da crise, o ministro da defesa almoçava num
restaurante em Brasília, e o general chefe da GSI, visivelmente aturdido,
tropeçava ao caminhar por entre os escombros do palácio do planalto, que lhe
cabia proteger. Quando intervém, provocado pelo ministro da Justiça, Flávio
Dino, a quem se deveu o mínimo de reação governamental, o ministro da defesa
propõe a aplicação da GLO, o consabido instrumento constitucional que, pela via
da intervenção militar por ele ensejada, consolidaria o golpe fascista em
marcha.
Naquele 8 de janeiro a presidência da República ainda não
havia reunido forças para dispersar os vândalos acantonados em frente ao
quartel-general do Exército. É fácil imaginar qual seria a reação dos mesmos
oficiais se, em vez de subversivos de extrema-direita, os acampados fossem
líderes sindicais, estudantes, trabalhadores sem terra ou indígenas reclamando
suas terras griladas. Na segurança dos amotinados da direita xucra revelou-se
oficial exemplar o general Júlio César de Arruda, então comandante do exército,
obstinado em impedir a prisão dos golpistas acampados no quartel-general da
Força em Brasília.
Não foi muito distinta a reação das “instituições”.
O ministro da Justiça, diante do cenário de absoluta inação
das instituições, telefona ao presidente da república, então em Araraquara, e
dita-lhe: “Presidente: não há comando”. O ministro poupou seu chefe, ao
esquivar-se de dizer que tampouco havia a mínima ação do elemento militar e das
forças policiais para proteger os bens públicos e debelar o levante. Seu depoimento: “O trajeto [dos
delinquentes], de 8 quilômetros, foi acompanhado por agentes de segurança, alguns
deles flagrados tomando água de coco e tirando selfies, enquanto o Congresso
era invadido ao fundo” (O Globo,07/01/2024).
O presidente não dispunha de serviço de informação digno de
qualquer respeito. Não poderia confiar nos militares que haviam tentado impedir
sua candidatura, sua eleição, sua posse e, afinal, seu governo. Não podia
confiar na Abin, e soube-se que não podia confiar no GSL. Um quadro claro de
insegurança. Narra o presidente: “Antes de viajar para São Paulo conversei com
o ministro Múcio [Defesa] e ele disse que as pessoas iam sair [dos
acampamentos]. Viajei tranquilo. Não me passava pela cabeça ser pego de
surpresa com aquela manifestação. Sinceramente, não tive as informações
corretas sobre a possibilidade de acontecer aquilo. Tinha a informação de que
os acampamentos estavam acabando, mas depois soube que, no sábado, começou a
chegar gente de ônibus. Não imaginei que pudessem chegar à invasão” (O Globo,
07/01/2024). Ora, “aquilo” a que se refere Lula era quase tudo: a senha para o golpe.
As tropas seriam chamadas para “restabelecer a ordem” e ao fim e ao cabo assim
voltariam ao poder.
Qual o discurso das festividades glorificantes das
“instituições”, senão o de que devemos esquecer o que houve e não temer o amanhã,
pois nossas “instituições”, as instituições da classe dominante, herdeiras da
casa-grande, estariam de pé em defesa da democracia? Mas, em resumo, o que foi
mesmo que elas fizeram de glorioso senão simplesmente exprobar os crimes contra
palácios, encerrada a injúria?
A defesa do povo, exilado em seu país, não pode ser delegada
às “instituições” da classe dominante, ora celebradas como guardiãs de uma
democracia que nunca hesitaram em trair. O que essa narrativa festiva almeja é
a tutela ideológica, a falsa tranquilidade, a paz de cemitério que esconde os
conflitos de classe para que tudo permaneça como está. E não nos deve entusiasmar
as louvações à “ordem institucional”, nem confiar nas “instituições” como
pretensas guardiãs da democracia que tanto traíram. Seria como entregar a raposa pantagruélica a
guarda do galinheiro.
A luta para valer contra a extrema-direita e o fascismo
(qualquer que seja seu nome de fantasia), não se conforma nos jogos da
institucionalidade: no seu terreno é que a Lava Jato operou seus muitos crimes,
entre os quais é sempre relevante pôr de manifesto a condenação e prisão de
Lula, encarcerado numa enxovia por 580 dias. Tudo sagrado e consagrado pelo STF,
este mesmo que aí está. A história ensina que o locus da resistência é a luta
social, no enfrentamento político-ideológico, que nosso governo (acuado como um
gato escaldado) teme, por erro tático, e as esquerdas evitam, por falta de
visão estratégica. O recuo político pode até tornar menos dispendiosa e menos
dramática a conclusão do terceiro mandato. Mas atrasará por anos não conhecidos
o fundamental de nossa luta, que é o progresso das reformas sociais,
desacreditando nossas forças.
Com o país conformado, como querem os liberais e os conservadores, como exige a classe dominante e admitem setores atrasados do nosso governo, estará aberto à direita, com nossa indesculpável conivência, o caminho sem retorno para o fascismo.
Por: Roberto Amaral.
* Com a colaboração de Pedro Amaral.
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