Respeitadas as circunstâncias, que normalmente frustram os
sonhos, há, porém, o que celebrar. Refiro-me à resistência do presidente,
desafiado a todo tempo em sua habilidade política e testado em sua fidelidade
ao projeto que o levou das greves dos Metalúrgicos do ABC ao Palácio do
Planalto, já pela terceira vez – fato inédito nesta República oligárquica. Mas
me refiro de igual modo ao PAC em si, sem ainda discutir seu escopo, ao fim e
ao cabo um programa de governo de cerca de quatro anos, a que não revelou
apreço a chamada grande mídia. Registro que este terceiro governo Lula, em seu
sétimo mês, começa pelo bom início, que é a recuperação do planejamento como
instrumento de gestão. O que não é pouca coisa, nas condições presentes, mas
não é nada demais, tendo em vista que até mesmo a ditadura castrense adotou
esse modelo por anos a fio.
Eis um indicador do nosso atraso.
Com o novo PAC, que esperamos possa ter o sucesso negado aos
seus antecessores, retomamos a boa tradição do Estado indutor do
desenvolvimento, que conhecemos principalmente na saga varguista, que FHC jurou
erradicar. Se não chegarmos a assentar as bases de um Estado socialmente e
economicamente democrático, que não deveria ser historicamente tão custoso – e
hoje, para nós brasileiros, tão distante –, aspiremos ao mínimo oferecido pela
história do presente, a saber, a ablação do neoliberalismo associado ao
autoritarismo, essa degradação de que a soberania popular nos livrou em outubro
de 2022, sem ainda nos poder livrar da preeminência da caserna, que nos malsina
a República desde o nascedouro.
O conservadorismo mais rés-do-chão se irmana ao cobiçoso
Centrão, transformando o poder legislativo num colegiado reacionário,
refratário a qualquer sorte de mudança nas estruturas arcaicas do poder, de que
são produto. Os “grotões” do atraso habitam a Faria Lima e os quartéis e dão
ordens ao Brasil, diretamente nos gabinetes do poder (em todas as suas
instâncias), ou por intermédio dos grandes meios de comunicação, seu aparelho
ideológico de dominação.
Por isso mesmo, no Brasil que passa fome, não se discute o
Brasil, não se discute que sociedade temos, nem muito menos que sociedade
precisamos ter. O que deveria ser o debate nacional cede espaço ao império da
irrelevância; a futilidade como projeto expele a informação. Este quadro,
contudo, não é suficiente para explicar o conservadorismo larvar da sociedade
brasileira, pois é apenas um elemento, certamente não decisivo, na teia
histórico-sociológica que costura nossa formação: seremos sempre filhos da
casa-grande e da senzala se não reagirmos ao desafio, ou seja, se continuarmos
nos omitindo do debate.
E as esquerdas em tudo isso?
Se as disputas eleitorais são necessárias, e devemos
enfrentá-las com o melhor das nossas forças, é também preciso ter claro que, no
sistema do capital, o domínio da burguesia é tão sólido que, como alertou
Lenin, a mera troca de agentes – de pessoas ou partidos – não abole esse poder.
Ou seja, é falsa crença de que a vitória nas urnas, por si só, assegura que a
vontade da maioria seja posta em prática, e priorizadas as suas necessidades.
As comprovações disso abundam no cotidiano brasileiro, e talvez não haja melhor
exemplo do que a tranquilidade com que o grande capital encara a periódica substituição de seis por meia dúzia, a cada
pleito, no comando da economia nacional.
Em ocasiões extremas a ordem democrática permite a ascensão
de um “estranho no ninho”, mas se lhe cede a governança vigiada ou
compartilhada, não lhe permite o exercício poder. Quando esse limite é
intentado, a resposta é a de sempre: golpe de Estado
Eis por que a educação política e a organização popular são a chave para qualquer projeto de esquerda – algo que as forças reacionárias, ao menos elas, não se permitem ignorar.
Voltando: o PAC parece ser uma obra bem engendrada, mas
jamais será um projeto com o qual o povo (aquele que dá suporte real a Lula)
possa se identificar, pois não lhe pertence. Chamado às ruas para defendê-lo,
ficará em casa. Porque simplesmente não foi ouvido nem chamado ao Theatro
Municipal do Rio de Janeiro, onde, em noite de gala, o Pacto foi apresentado a
uma plateia seleta. Por enquanto é um belo texto, certamente será publicado no
Diário Oficial, mas será sempre simplesmente isso: um documento elaborado por
técnicos competentes e bem-intencionados. Nada mais. É pouco para um país
recentemente assolado pelo assalto da direita protofascista, com inegável apoio
popular. Será um engano, certamente
letal, suporem as esquerdas que os desafios foram eliminados com as difíceis
eleição e posse do presidente Lula. Jamais esquecer que muitas vezes águas
passadas movem moinhos. Aos incréus sugiro uma mirada em nosso entorno
sul-americano, começando por Colômbia, Argentina e a tragédia peruana.
Contra o repouso do guerreiro em plena guerra, sugiro o
combate permanente: nos termos de hoje é a batalha ideológica, fundamental para
a conquista da sociedade e para a sustentação do governo Lula. Com o PAC, Lula
nos promete a retomada do desenvolvimento, e associa o progresso ao combate à
megera miséria, filha primogênita da
obscena concentração de renda: segundo o IBGE, , a renda do 1% de brasileiros
mais ricos é 33 vezes superior à renda da metade mais pobre da população.
Que tal irmos mais adiante e fazermos deste país uma grande
ágora, promovendo o debate livre e o livre pensar em todos os cantos e a
propósito de tudo e de qualquer coisa? Este é o bom momento de o presidente
abrir o diálogo nacional, pôr o país a pensar seus problemas e suas soluções
com a sociedade. Perdida esta oportunidade (muitas já foram desperdiçadas),
podemos ter segurança de que a História nos absolverá? Apostamos todas as
fichas da esperança na coragem de Lula, líder e estadista, aquele que vê mais
longe que seus acompanhantes de caminhada. O desafio é passar o país a limpo,
como reclamava Darcy Ribeiro, usando a reflexão, o livre pensar, o indagar, o
questionar, como ferramenta pedagógica. Estimular as dúvidas, e contar que o
povo encontrará respostas. Discutir o país. Por que ele é desse jeito? Ao
debater a vida nacional e a vida em seu bairro, em sua cidade, o transporte, a
violência, o desemprego, a escola, o sistema político... o povo, sozinho, sem o
concurso de instrutores ou conselheiros, compreenderá que nem a pobreza nem a
riqueza são fenômenos naturais. A partir desse momento ele conquistará a
liberdade que a sociedade de classes lhe nega, e se transformará em cidadão.
Sujeito ativo, se transformará em agente do processo histórico.
Um ensaio pode ser trabalhar o PAC como um projeto político,
recordando o entusiasmo e a confiança que levaram o antigo PT a implantar o
orçamento participativo, hoje uma saudosa lembrança.
***
Aula Magna – Assim foi definida, por muitos (defensores ou
não da justiça social), a participação de João Pedro Stédile na farsesca “CPI
do MST”, que vai se extinguindo na Câmara dos Deputados. Como o inquérito
carece da necessária definição de objeto, a reunião da última terça-feira deu
ao líder do MST uma oportunidade – rara – de falar ao grande público, com fineza
e acuidade, sobre modelo agrário, relações de produção, sociedade de classes e
outros temas que domina com brilhantismo, para o espanto de uma meia dúzia de
beócios (a começar pelo presidente e o relator do colegiado) que avaliaram
poder acuá-lo. Um dos pontos que a aula de Stédile nos deixa para reflexão é a
reprodução do modelo agroexportador colonial – que produzia riqueza sem
desenvolver o país – no agronegócio que aí está, cantado em verso e prosa pelo
aparelho ideológico do grande capital. Outro é o riquíssimo exemplo, de
confiança e aposta na capacidade de auto-organização do nosso povo, que o MST e
outros movimentos sociais oferecem às esquerdas brasileiras. Há de ser por isso
que são tão temidos e odiados. Oxalá essa Aula Magna ecoe nos gabinetes de
nossos e nossas parlamentares e diga algo aos partidos que confundem tática com
estratégia.
.Por: Roberto Amaral.
* Com a colaboração de Pedro Amaral.
Postar um comentário